segunda-feira, 18 de junho de 2012

Construção - Chico Buarque (1971)



O Brasil do começo dos anos 70 era uma terra de paradoxos. O governo do General Emilio Garrastazu Médici tinha em seu bojo o chamado "Milagre Brasileiro", que prometia crescimento econômico recorde e baixa inflação. O país era campeão mundial de futebol e o slogan "Ame-o ou Deixe-o" era colado nos vidros dos carros. O que poderia estar errado?

O preço para essa suposta estabilidade e ufanismo era alto. A censura tolhia a liberdade artística e a atmosfera repressora levava cidadãos insuspeitos para a cadeia. Depois de um breve período exilado na Itália, Chico Buarque retornou ao Brasil mostrando que não compactuava com a situação. Estava pronto para o confronto e explicitou isso em 1971, no LP Construção. E foi a música que deu título ao disco que mexeu com a cabeça das pessoas.

"Construção", quarta faixa do lado A do vinil original, é um épico, com duração de seis minutos e meio. Trata-se de uma crônica sobre a vida e a morte de um trabalhador. Um dos setores que mais se expandiam com o propalado crescimento econômico era o da construção civil. Operários eram peças de reposição, ganhando pouco e estendendo sua jornada de trabalho com infindáveis horas extras para garantir a compra dos bens materiais que eram anunciados na TV. Acidentes de trabalho eram acontecimentos corriqueiros. Ao colocar isso em canção, Chico criticou indiretamente o sistema, afinal a situação do operariado era consequência das ações do governo.

O personagem anônimo de "Construção" sai de casa, beija a mulher e os filhos e vai para o trabalho. Lá, se anima e ergue uma parede "como se fosse máquina". Faz uma pausa, come qualquer coisa e bebe uma cachaça. Cai do andaime e se estatela no meio da rua, "como um pacote, atrapalhando o tráfego". Chico situa tudo em formato não discursivo, até mesmo impessoal.

As estrofes são repetidas três vezes, com algumas palavras-chave sendo trocadas de posição. Mas são essas mudanças que tornam ambígua a compreensão da música.

Na primeira vez, o cantor apresenta a história de uma forma lógica, quase jornalística.

Na segunda repetição, a mesma história é contada, mas agora é levado em conta o estado psicológico do protagonista, que já estava se transformando num autômato.

Na parte final, que não aparece na íntegra, o peão anônimo já se encontra demente e alucinado, não é dono de suas ações. O trabalhador teria morrido como consequência da falta de condições de trabalho ou teria se suicidado, desesperado diante de suas escassas perspectivas de vida?

"Construção" não seria tão arrebatadora sem o arranjo sinfônico e imponente concebido por Rogério Duprat. O maestro usou a orquestra como um componente sinistro, complementando a cadência do samba de Chico. Os instrumentos aparecem a princípio emulando os caóticos ruídos da metrópole, suas buzinas e prédios em construção. No final, quando "Construção" se funde ao refrão de "Deus Lhe Pague", a canção mais parece uma ópera demente no estilo de Gilbert & Sullivan.

"Construção" passou incólume pela censura, mas a partir daí Chico ficou visado. Dois anos depois, o compositor declarou que "Construção" não tinha nada a ver com o operariado, que a letra não refletia uma experiência formal, e sim emocional. "Construção" ainda é referência para entender um período espinhoso da sociedade brasileira. Essa é a marca de um verdadeiro artista.





Construção
Chico Buarque/1971

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego


Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público


Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado