terça-feira, 23 de abril de 2013

Pixinguinha (23/04/1897 - 17/02/1973)


Músicos, musicólogos e amantes de nossa música podem discordar de uma coisa ou outra. Afinal, como diria a vizinha gorda e patusca de Nélson Rodrigues, gosto não se discute. Mas, se há um nome acima das preferências individuais, este é Pixinguinha. O crítico e historiador Ari Vasconcelos sintetizou de forma admirável a importância desse fantástico instrumentista, compositor, orquestrador e maestro:“Se você tem 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco. Mas se dispõe apenas do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido; escreva depressa: Pixinguinha.”

Uma rápida passagem pela sua vida e sua obra seria suficiente para verificar que ele é responsável por façanhas surpreendentes, como a de estrear no disco aos 13 anos de idade revolucionando a interpretação do choro.

É que naquela época (1911) a gravação de disco ainda estava em sua primeira fase no Brasil e os instrumentistas, mesmo alguns ases do choro, pareciam intimidados com a novidade e tocavam como se tivessem pisando em ovos, com medo de errar. Pixinguinha começou com segurança total e improvisou na flauta com a mesma tranquilidade com que tocava nas rodas de choro ao lado do pai e dos irmãos, também músicos, e dos muitos instrumentistas que formavam a elite musical do início do século XX.

Pixinguinha só não era eficiente em certos aspectos da vida prática. Em 1968, por exemplo, a música popular brasileira, os jornalistas, os amigos e o próprio governo do então estado da Guanabara mobilizaram-se para uma série de eventos comemorativos pela passagem dos seus 70 anos no dia 23 de abril. Sabendo que a certidão de nascimento mais utilizada em fins do século XIX era a certidão de batismo, o músico e pesquisador Jacob Bitencourt, o grande Jacob do Bandolim, compareceu à igreja de Santana, no Centro do Rio, para obter uma cópia da certidão de batismo de Pixinguinha, e descobriu que ele não fazia 70 anos, mas 71, pois não nascera em 1898 como sempre informou, mas em 1897. O erro fora consagrado “oficialmente” em 1933, quando Pixinguinha procurou o cartório para fazer a sua primeira certidão de nascimento. Mas não se enganou apenas no ano. Registrou-se com o mesmo nome do seu pai, Alfredo da Rocha Viana, esquecendo-se do Filho, que era seu, e informou errado o nome completo da mãe: Raimunda Rocha Viana em vez de Raimunda Maria da Conceição. O que é certo é que tinha muitos irmãos: Eugênio, Mário, Oldemar e Alice, do primeiro casamento de Raimunda, e Otávio, Henrique, Léo, Cristodolina, Hemengarda, Jandira, Hermínia e Edith, do casamento dela com Alfedo da Rocha Viana. Ele era o caçula.

A flauta e as rodas de choros não impediram que tivesse uma infância como as outras crianças, pois jogava bola de gude e soltava pipa nos primeiros bairros em que morou, Piedade e Catumbi. O pai, flautista, não só deu a ele a primeira flauta como o encaminhou para os primeiros professores de música, entre os quais o grande músico e compositor Irineu de Almeida, o Irineu Batina.

Seu primeiro instrumento foi o cavaquinho mas mudou logo para a flauta. Sua primeira composição, ainda bem menino, foi Lata de leite, um choro em três partes como era quase obrigatório na época. Também foi em 1911 que se incorporou à orquestra do rancho carnavalesco Filhas da Jardineira, onde conheceu os seus amigos de toda a vida, Donga e João da Baiana.

O pai preocupava-se também com os estudos curriculares do menino, que, antes de frequentar os bancos escolares , teve professores particulares. Ele, porém, queria mesmo era a música. Tanto que, matriculado no Colégio São Bento, famoso pelo seu rigor, matava aula para tocar no que seria o seu primeiro emprego, na casa de chope A Concha, na Lapa Boêmia.

“Às vezes, ia lá com a farda do São Bento”, recordou Pixinguinha em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som. Tudo isso, antes de completar os 15 anos, quando inclusive trabalhou como músico na orquestra do Teatro Rio Branco. Em 1914, com 17 anos, editou pela primeira vez uma composição de sua autoria, chamada Dominante. Na edição da Casa Editora Carlos Wehrs, seu apelido foi registrado como Pinzindim. Na verdade, o apelido do músico ainda não contava com uma grafia definitiva, pois fora criado pela sua avó africana. O significado de Pinzindim teve várias versões. Para o radialista e pesquisador Almirante, significava “menino bom” num dialeto africano, mas a melhor interpretação, sem dúvida, é a do pesquisador de cultura negra e grande compositor Nei Lopes, que encontrou a palavra psi-di numa língua de Moçambique, que significa comilão ou glutão. Como Pixinguinha já carregava também o apelido caseiro de Carne Assada, por ter sido surpreendido apropriando-se indevidamente um pedaço de carne assada antes do almoço que seria oferecido pela família a vários convidados, é provável que a definição encontrada por Nei Lopes seja a mais correta.

Em 1917, gravou um disco do Grupo do Pechinguinha [sic] na Odeon com dois clássicos da sua obra de compositor, o choro Sofres porque queres e a valsa Rosa, sendo que esta última tornou-se mais conhecida em 1937, quando foi gravada por Orlando Silva.

Naquela altura, ele já era um personagem famoso não só pelo seu talento de compositor e de flautista como por outras iniciativas, entre as quais sua participação no Grupo do Caxangá, que saía no carnaval desde 1914 e era integrado por músicos importantes como João Pernambuco, Donga e Jaime Ovale. E era também uma das figuras principais das rodas de choro na famosa casa de Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida), onde o choro ocorria na sala e o samba no quintal. Foi lá que nasceu o famoso Pelo telefone, de Donga e Mauro de Almeida, considerado o primeiro samba gravado. Em 1918, Pixinguinha e Donga foram convocados por Isaac Frankel, proprietário do elegante cinema Palais, na Avenida Rio Branco para formar uma pequena orquestra que tocaria na sala de espera. E nasceu o grupo Oito Batutas, integrado por Pixinguinha (flauta), Donga (violão), China, irmão de Pixinguinha (violão e canto), Nélson Alves (cavaquinho), Raul Palmieri (violão), Jacob Palmieri (bandola e reco-reco) e José Alves de Lima, Zezé (bandolim e ganzá). “A única orquestra que fala alto ao coração brasileiro”, dizia o letreiro colocado na porta do cinema. Foi um sucesso, apesar de algumas restrições de caráter racista na imprensa. Em 1919, Pixinguinha gravou Um a zero, que compusera em homenagem à vitória da seleção brasileira de futebol sobre a uruguaia, dando ao país seu primeiro título internacional, o de campeão sul-americano. É impressionante a modernidade desse choro, mesmo quando comparado a tantas obras criadas mais de meio século depois.

Os Oito Batutas viajaram pelo Brasil e, em fins de 1921, receberam um convite irrecusável: uma temporada em Paris, financiada pelo milionário Arnaldo Guinle. E, no dia 29 de janeiro de 1922, embarcaram para a França, onde permaneceram até agosto tocando em casas diferentes, sendo a maior parte do tempo no elegante cabaré Sheherazade. Foi em Paris que Pixinguinha ganhou de Arnaldo Guinle o saxofone que iria substituir a flauta no início da década de 1940, e Donga recebeu o banjo, com o qual faria muitas gravações. Na volta da França, o grupo fez várias apresentações no Rio de Janeiro (inclusive na exposição comemorativa do centenário da independência) e, em novembro de 1922, novamente os Oito Batutas viajaram, dessa vez para a Argentina, percorrendo o país durante cerca de cinco meses e gravando vários discos para a gravadora Victor. Na volta ao Brasil, a palavra Pixinguinha já ganhara sua grafia definitiva nos discos e na imprensa. Novas apresentações em teatros e em vários eventos e muitas gravações de disco, com seu grupo identificado com vários nomes: Pixinguinha e Conjunto, Orquestra Típica Pixinguinha, Orquestra Típica Pixinguinha-Donga e Orquestra Típica Oito Batutas.

Os arranjos escritos para seus conjuntos chamaram a atenção das gravadoras, que sofriam na época com a quadradice dos maestros da época, quase todos estrangeiros e incapazes de escrever arranjos com a bossa exigida pelo samba e pela música de carnaval. Contratado pelo Victor, fez uma verdadeira revolução, vestindo a nossa música com a brasilidade que fazia tanta falta. São incontáveis os arranjos que escreveu durante os anos em que atuou como orquestrador das gravadoras brasileiras. Tudo isso nos leva a garantir que não estará cometendo qualquer exagero quem afirmar que Pixinguinha foi o grande criador do arranjo musical brasileiro. Na década de 1930, gravou também muitos discos como instrumentista e várias músicas de sua autoria (entre as quais as fantásticas gravações de Orlando Silva de Rosa e Carinhoso), mas o mais expressivo daquela fase (incluindo mais da metade da década de 1940) foi a sua atuação como arranjador.

Em 1942, fez a última gravação como flautista num disco com dois choros de sua autoria: Chorei e Cinco companheiros. Ele nunca explicou direito a troca para o saxofone, embora se acredite que o consumo excessivo de bebida seja o motivo. Mas a música brasileira foi enriquecida pelos contrapontos que fazia no sax e com o lançamento de dezenas de disco em dupla com o flautista Benedito Lacerda, certamente um dos momentos mais altos do choro em matéria de gravações. Em fins de 1945, Pixinguinha participou da estréia do programa “O pessoal da Velha Guarda”, dirigido e apresentado pelo radialista Almirante e que contava também com a participação de Benedito Lacerda. Em julho de 1950, uma iniciativa inédita de Pixinguinha: gravou cantando o lundu da sua autoria (letra de Gastão Viana) Yaô africano, que fora gravado em 1938. Em 1951, o prefeito do Rio, João Carlos Vital, nomeou-o professor de música e de canto orfeônico (ele era funcionário da prefeitura desde a década de 1930). Até aposentar-se deu aulas em várias escolas cariocas. A partir de 1953, passou a frequentar o Bar Gouveia, no Centro da cidade, numa assiduidade interrompida apenas por problemas de doenças. Acabou contemplado com uma cadeira permanente, com o seu nome gavado, na qual apenas ele poderia sentar.

Um grande acontecimento foi o Festival da Velha Guarda, que comemorava o quarto centenário da cidade de São Paulo, em 1954. Pixinguinha reuniu o seu pessoal da Velha Guarda (mais uma vez sob o comando de Almirante) e realizaram várias apresentações no rádio, na televisão e em praça pública com a assistência de dezenas de milhares de paulistas. Antes da volta ao Rio, Almirante recebeu uma carta do presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, dizendo, entre outras coisas, que, “dentre todas as extraordinárias festividades em que se comemora o quarto centenário, nenhuma teve maior repercussão em São Paulo, nem conseguiu tocar mais profundamente o coração do seu povo”. Em 1955, foi realizado o segundo Festival da Velha Guarda, mas sem a repercussão do primeiro.

O mais importante de 1955, para Pixinguinha, foi a gravação do seu primeiro long-play, com a participação dos seus músicos e de Almirante. O disco recebeu o nome de “Velha Guarda”. No mesmo ano, a turma toda participou do show O samba nasce no coração, na elegante casa noturna Casablanca. No ano seguinte, a rua em que ele morava, no bairro de Ramos, a Berlamino Barreto, ganhou o nome oficial de Pixinguinha, graças a um projeto do vereador Odilon Braga, sancionado pelo prefeito Negrão de Lima. A inauguração contou com a presença do prefeito e de vários músicos e foi comemorada com uma festa que durou dia e noite, com muita música e bastante álcool. Em novembro de 1957, ele foi um dos convidados pelo presidente Juscelino Kubitschek para almoçar com o grande trompetista Louis Armstrong no Palácio do Catete. Em 1958, depois de um almoço no clube Marimbás e sofreu um mal súbito. No mesmo ano, seu conjunto da Velha Guarda foi o escolhido pela então poderosa revista O Cruzeiro para recepcionar os jogadores da seleção brasileira, que chegavam da Suécia com a Copa do Mundo conquistada. Em 1961, fez várias músicas com o poeta Vinícius de Morais para o filme Sol sobre a lama, de Alex Viany. Em junho de 1963, sofreu um enfarte que o levou a passar várias internado num casa de saúde.

Em 1968, seus 70 anos (que, na verdade, como vimos, eram 71) foram comemorados com um espetáculo no teatro Municipal que rendeu um disco, uma exposição no Museu da Imagem e do Som, uma sessão solene na Assembléia Legislativa carioca e um almoço que reuniu centenas de pessoas numa churrascaria da Tijuca. Em 1971, Hermínio Belo de Carvalho produziu um disco intitulado Som Pixinguinha, com orquestra e solos de Altamiro Carrilho na flauta. Em 1971, um daqueles momentos que levavam seus amigos e considerá-lo santo: sua mulher, dona Beti, passou mal e foi internada num hospital. Dias depois, foi ele acometido de mais um problema cardíaco, foi também internado no mesmo hospital, mas, para que ela não percebesse que também estava doente, colocava um terno nos dias de visita e ia visitá-la como se estivesse vindo de casa. Por essa e por outras é que Vinícius de Morais dizia que, se não fosse Vinícius, queria ser Pixinguinha. Dona Beti morreu no dia 7 de junho de 1972, aos 74 anos de idade.

No dia 17 de fevereiro de 1973, quando se preparava para ser o padrinho de uma criança na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, sofreu o último e definitivo enfarte. A Banda de Ipanema, que fazia naquele momento um dos seus mais animados desfiles, desfez-se imediatamente com a chegada da notícia. Ninguém queria saber de carnaval.



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