Músicos, musicólogos e amantes de nossa música podem discordar de uma coisa ou outra. Afinal, como diria a vizinha gorda e patusca de Nélson Rodrigues, gosto não se discute. Mas, se há um nome acima das preferências individuais, este é Pixinguinha. O crítico e historiador Ari Vasconcelos sintetizou de forma admirável a importância desse fantástico instrumentista, compositor, orquestrador e maestro:“Se você tem 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco. Mas se dispõe apenas do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido; escreva depressa: Pixinguinha.”
Uma rápida passagem pela sua vida e sua obra
seria suficiente para verificar que ele é responsável por façanhas surpreendentes,
como a de estrear no disco aos 13 anos de idade revolucionando a interpretação
do choro.
É que naquela época (1911) a gravação de disco
ainda estava em sua primeira fase no Brasil e os instrumentistas, mesmo alguns ases
do choro, pareciam intimidados com a novidade e tocavam como se tivessem pisando
em ovos, com medo de errar. Pixinguinha começou com segurança total e
improvisou na flauta com a mesma tranquilidade com que tocava nas rodas de choro
ao lado do pai e dos irmãos, também músicos, e dos muitos instrumentistas que
formavam a elite musical do início do século XX.
Pixinguinha só não era eficiente em certos
aspectos da vida prática. Em 1968, por exemplo, a música popular brasileira, os
jornalistas, os amigos e o próprio governo do então estado da Guanabara
mobilizaram-se para uma série de eventos comemorativos pela passagem dos seus 70
anos no dia 23 de abril. Sabendo que a certidão de nascimento mais utilizada em
fins do século XIX era a certidão de batismo, o músico e pesquisador Jacob Bitencourt,
o grande Jacob do Bandolim, compareceu à igreja de Santana, no Centro do Rio,
para obter uma cópia da certidão de batismo de Pixinguinha, e descobriu que ele
não fazia 70 anos, mas 71, pois não nascera em 1898 como sempre informou, mas
em 1897. O erro fora consagrado “oficialmente” em 1933, quando Pixinguinha procurou
o cartório para fazer a sua primeira certidão de nascimento. Mas não se enganou
apenas no ano. Registrou-se com o mesmo nome do seu pai, Alfredo da Rocha
Viana, esquecendo-se do Filho, que era seu, e informou errado o nome completo
da mãe: Raimunda Rocha Viana em vez de Raimunda Maria da Conceição. O que é
certo é que tinha muitos irmãos: Eugênio, Mário, Oldemar e Alice, do primeiro
casamento de Raimunda, e Otávio, Henrique, Léo, Cristodolina, Hemengarda,
Jandira, Hermínia e Edith, do casamento dela com Alfedo da Rocha Viana. Ele era
o caçula.
A flauta e as rodas de choros não impediram que
tivesse uma infância como as outras crianças, pois jogava bola de gude e
soltava pipa nos primeiros bairros em que morou, Piedade e Catumbi. O pai,
flautista, não só deu a ele a primeira flauta como o encaminhou para os primeiros
professores de música, entre os quais o grande músico e compositor Irineu de
Almeida, o Irineu Batina.
Seu primeiro instrumento foi o cavaquinho mas
mudou logo para a flauta. Sua primeira composição, ainda bem menino, foi Lata
de leite, um choro em três partes como era quase obrigatório na época. Também
foi em 1911 que se incorporou à orquestra do rancho carnavalesco Filhas da
Jardineira, onde conheceu os seus amigos de toda a vida, Donga e João da Baiana.
O pai preocupava-se também com os estudos curriculares
do menino, que, antes de frequentar os bancos escolares , teve professores
particulares. Ele, porém, queria mesmo era a música. Tanto que, matriculado no
Colégio São Bento, famoso pelo seu rigor, matava aula para tocar no que seria o
seu primeiro emprego, na casa de chope A Concha, na Lapa Boêmia.
“Às vezes, ia lá com a farda do São Bento”,
recordou Pixinguinha em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som. Tudo isso,
antes de completar os 15 anos, quando inclusive trabalhou como músico na
orquestra do Teatro Rio Branco. Em 1914, com 17 anos, editou pela primeira vez
uma composição de sua autoria, chamada Dominante. Na edição da Casa Editora
Carlos Wehrs, seu apelido foi registrado como Pinzindim. Na verdade, o apelido
do músico ainda não contava com uma grafia definitiva, pois fora criado pela
sua avó africana. O significado de Pinzindim teve várias versões. Para o radialista
e pesquisador Almirante, significava “menino bom” num dialeto africano, mas a
melhor interpretação, sem dúvida, é a do pesquisador de cultura negra e grande compositor
Nei Lopes, que encontrou a palavra psi-di numa língua de Moçambique, que
significa comilão ou glutão. Como Pixinguinha já carregava também o apelido caseiro
de Carne Assada, por ter sido surpreendido apropriando-se indevidamente um
pedaço de carne assada antes do almoço que seria oferecido pela família a vários
convidados, é provável que a definição encontrada por Nei Lopes seja a mais
correta.
Em 1917, gravou um disco do Grupo do Pechinguinha
[sic] na Odeon com dois clássicos da sua obra de compositor, o choro Sofres
porque queres e a valsa Rosa, sendo que esta última tornou-se mais conhecida em
1937, quando foi gravada por Orlando Silva.
Naquela altura, ele já era um personagem famoso
não só pelo seu talento de compositor e de flautista como por outras
iniciativas, entre as quais sua participação no Grupo do Caxangá, que saía no
carnaval desde 1914 e era integrado por músicos importantes como João Pernambuco,
Donga e Jaime Ovale. E era também uma das figuras principais das rodas de choro
na famosa casa de Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida), onde o choro ocorria
na sala e o samba no quintal. Foi lá que nasceu o famoso Pelo telefone, de
Donga e Mauro de Almeida, considerado o primeiro samba gravado. Em 1918, Pixinguinha
e Donga foram convocados por Isaac Frankel, proprietário do elegante cinema
Palais, na Avenida Rio Branco para formar uma pequena orquestra que tocaria na
sala de espera. E nasceu o grupo Oito Batutas, integrado por Pixinguinha
(flauta), Donga (violão), China, irmão de Pixinguinha (violão e canto), Nélson
Alves (cavaquinho), Raul Palmieri (violão), Jacob Palmieri (bandola e
reco-reco) e José Alves de Lima, Zezé (bandolim e ganzá). “A única orquestra
que fala alto ao coração brasileiro”, dizia o letreiro colocado na porta do cinema.
Foi um sucesso, apesar de algumas restrições de caráter racista na imprensa. Em
1919, Pixinguinha gravou Um a zero, que compusera em homenagem à vitória da seleção
brasileira de futebol sobre a uruguaia, dando ao país seu primeiro título
internacional, o de campeão sul-americano. É impressionante a modernidade desse
choro, mesmo quando comparado a tantas obras criadas mais de meio século depois.
Os Oito Batutas viajaram pelo Brasil e, em fins
de 1921, receberam um convite irrecusável: uma temporada em Paris, financiada
pelo milionário Arnaldo Guinle. E, no dia 29 de janeiro de 1922, embarcaram
para a França, onde permaneceram até agosto tocando em casas diferentes, sendo
a maior parte do tempo no elegante cabaré Sheherazade. Foi em Paris que Pixinguinha
ganhou de Arnaldo Guinle o saxofone que iria substituir a flauta no início da
década de 1940, e Donga recebeu o banjo, com o qual faria muitas gravações. Na
volta da França, o grupo fez várias apresentações no Rio de Janeiro (inclusive
na exposição comemorativa do centenário da independência) e, em novembro de
1922, novamente os Oito Batutas viajaram, dessa vez para a Argentina,
percorrendo o país durante cerca de cinco meses e gravando vários discos para a
gravadora Victor. Na volta ao Brasil, a palavra Pixinguinha já ganhara sua
grafia definitiva nos discos e na imprensa. Novas apresentações em teatros e em
vários eventos e muitas gravações de disco, com seu grupo identificado com
vários nomes: Pixinguinha e Conjunto, Orquestra Típica Pixinguinha, Orquestra
Típica Pixinguinha-Donga e Orquestra Típica Oito Batutas.
Os arranjos escritos para seus conjuntos
chamaram a atenção das gravadoras, que sofriam na época com a quadradice dos
maestros da época, quase todos estrangeiros e incapazes de escrever arranjos
com a bossa exigida pelo samba e pela música de carnaval. Contratado pelo Victor, fez uma verdadeira
revolução, vestindo a nossa música com a brasilidade que fazia tanta falta. São
incontáveis os arranjos que escreveu durante os anos em que atuou como
orquestrador das gravadoras brasileiras. Tudo isso nos leva a garantir que não
estará cometendo qualquer exagero quem afirmar que Pixinguinha foi o grande
criador do arranjo musical brasileiro. Na década de 1930, gravou também muitos discos
como instrumentista e várias músicas de sua autoria (entre as quais as
fantásticas gravações de Orlando Silva de Rosa e Carinhoso), mas o mais expressivo
daquela fase (incluindo mais da metade da década de 1940) foi a sua atuação
como arranjador.
Em 1942, fez a última gravação como flautista
num disco com dois choros de sua autoria: Chorei e Cinco companheiros. Ele
nunca explicou direito a troca para o saxofone, embora se acredite que o
consumo excessivo de bebida seja o motivo. Mas a música brasileira foi enriquecida
pelos contrapontos que fazia no sax e com o lançamento de dezenas de disco em
dupla com o flautista Benedito Lacerda, certamente um dos momentos mais altos
do choro em matéria de gravações. Em fins de 1945, Pixinguinha participou da
estréia do programa “O pessoal da Velha Guarda”, dirigido e apresentado pelo
radialista Almirante e que contava também com a participação de Benedito
Lacerda. Em julho de 1950, uma iniciativa inédita de Pixinguinha: gravou cantando
o lundu da sua autoria (letra de Gastão Viana) Yaô africano, que fora gravado
em 1938. Em 1951, o prefeito do Rio, João Carlos Vital, nomeou-o professor de
música e de canto orfeônico (ele era funcionário da prefeitura desde a década
de 1930). Até aposentar-se deu aulas em várias escolas cariocas. A partir de
1953, passou a frequentar o Bar Gouveia, no Centro da cidade, numa assiduidade interrompida
apenas por problemas de doenças. Acabou contemplado com uma cadeira permanente,
com o seu nome gavado, na qual apenas ele poderia sentar.
Um grande acontecimento foi o Festival da Velha
Guarda, que comemorava o quarto centenário da cidade de São Paulo, em 1954.
Pixinguinha reuniu o seu pessoal da Velha Guarda (mais uma vez sob o comando de
Almirante) e realizaram várias apresentações no rádio, na televisão e em praça
pública com a assistência de dezenas de milhares de paulistas. Antes da volta
ao Rio, Almirante recebeu uma carta do presidente do Sindicato dos Jornalistas
de São Paulo, dizendo, entre outras coisas, que, “dentre todas as
extraordinárias festividades em que se comemora o quarto centenário, nenhuma
teve maior repercussão em São Paulo, nem conseguiu tocar mais profundamente o
coração do seu povo”. Em 1955, foi realizado o segundo Festival da Velha
Guarda, mas sem a repercussão do primeiro.
O mais importante de 1955, para Pixinguinha,
foi a gravação do seu primeiro long-play, com a participação dos seus músicos e
de Almirante. O disco recebeu o nome de “Velha Guarda”. No mesmo ano, a turma
toda participou do show O samba nasce no coração, na elegante casa noturna
Casablanca. No ano seguinte, a rua em que ele morava, no bairro de Ramos, a
Berlamino Barreto, ganhou o nome oficial de Pixinguinha, graças a um projeto do
vereador Odilon Braga, sancionado pelo prefeito Negrão de Lima. A inauguração
contou com a presença do prefeito e de vários músicos e foi comemorada com uma
festa que durou dia e noite, com muita música e bastante álcool. Em novembro de
1957, ele foi um dos convidados pelo presidente Juscelino Kubitschek para
almoçar com o grande trompetista Louis Armstrong no Palácio do Catete. Em 1958,
depois de um almoço no clube Marimbás e sofreu um mal súbito. No mesmo ano, seu
conjunto da Velha Guarda foi o escolhido pela então poderosa revista O Cruzeiro
para recepcionar os jogadores da seleção brasileira, que chegavam da Suécia com
a Copa do Mundo conquistada. Em 1961, fez várias músicas com o poeta Vinícius
de Morais para o filme Sol sobre a lama, de Alex Viany. Em junho de 1963, sofreu
um enfarte que o levou a passar várias internado num casa de saúde.
Em 1968, seus 70 anos (que, na verdade, como vimos,
eram 71) foram comemorados com um espetáculo no teatro Municipal que rendeu um
disco, uma exposição no Museu da Imagem e do Som, uma sessão solene na Assembléia
Legislativa carioca e um almoço que reuniu centenas de pessoas numa
churrascaria da Tijuca. Em 1971, Hermínio Belo de Carvalho produziu um disco intitulado
Som Pixinguinha, com orquestra e solos de Altamiro Carrilho na flauta. Em 1971,
um daqueles momentos que levavam seus amigos e considerá-lo santo: sua mulher,
dona Beti, passou mal e foi internada num hospital. Dias depois, foi ele
acometido de mais um problema cardíaco, foi também internado no mesmo hospital,
mas, para que ela não percebesse que também estava doente, colocava um terno
nos dias de visita e ia visitá-la como se estivesse vindo de casa. Por essa e
por outras é que Vinícius de Morais dizia que, se não fosse Vinícius, queria
ser Pixinguinha. Dona Beti morreu no dia 7 de junho de 1972, aos 74 anos de
idade.
No dia 17 de fevereiro de 1973, quando se preparava
para ser o padrinho de uma criança na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema,
sofreu o último e definitivo enfarte. A Banda de Ipanema, que fazia naquele momento
um dos seus mais animados desfiles, desfez-se imediatamente com a chegada da
notícia. Ninguém queria saber de carnaval.
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