O grupo de tradução comemorando o final do projeto! |
- Trabalho prático do Curso de Tradução -
Casa tomada - Julio Cortázar
(Bestiario, 1952)
Tradução:
Gustavo
Alfredo Parisi, Lautaro Esteban Tomaíno,
Liliana
Vulcano, Olinda Garrido e Susana García
Supervisão:
Adriana Almeida
Gostávamos da casa porque além de espaçosa e antiga (hoje
que as casas antigas sucumbem à mais vantajosa liquidação dos seus materiais),
guardava as lembranças dos nossos bisavós, do avô paterno, dos nossos pais e
de toda a infância.
Eu e a Irene costumávamos persistir sozinhos nela, o
que era uma loucura, pois nessa casa podiam viver oito pessoas sem estorvos. Pela
manhã, fazíamos a limpeza, levantando às sete horas e, ao redor das onze, eu
deixava para a Irene os últimos quartos a serem limpos e ia para a cozinha. Almoçávamos
sempre ao meio-dia em ponto; já não ficava mais nada por fazer além de uns
pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em
como éramos suficientes para mantê-la limpa. Às vezes, até chegávamos a
acreditar que a casa é que não tinha nos deixado casar. A Irene rejeitou dois pretendentes
sem motivo nenhum e a minha Maria Esther morreu antes que ficássemos noivos. Entramos
nos quarenta anos com a inexpressável ideia de que o nosso simples e silencioso
casamento de irmãos era a necessária clausura da genealogia imposta por nossos
bisavós em nossa casa. Algum dia, morreríamos aí. Primos preguiçosos e esquivos
ficariam com a casa e a derrubariam para enriquecer com o terreno e os tijolos;
ou melhor ainda, nós mesmos a derrubaríamos com justiça antes de que fosse tarde
demais.
A Irene era uma moça nascida para não incomodar
ninguém. Além de sua atividade matinal, passava o resto do dia no seu quarto, tricotando.
Não sei por que ela tricotava tanto, eu acho que as mulheres fazem tricô quando
encontraram nessa tarefa o grande pretexto para não fazer nada. A Irene não era
assim, sempre fazia coisas necessárias, casaquinhos para o inverno, meias para
mim, bolerinhos e coletes para ela. Às vezes, fazia um colete e, logo depois,
desfazia-o porque não gostava de alguma coisa; era engraçado ver na cestinha um
monte de lã enrolada, resistindo a perder a forma de algumas horas antes. Aos
sábados, eu ia ao centro para comprar lã; a Irene confiava no meu bom gosto, ficava
contente com as cores e nunca tive que devolver as meadas. Eu aproveitava essas
saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades
em literatura francesa. Desde 1939 não
chegava nada valioso à Argentina.
Mas é da casa de que me interessa falar, da casa e da
Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Eu me pergunto o que a Irene
teria feito sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um pulôver
está terminado, não pode ser feito novamente sem escândalo. Certo dia,
encontrei a gaveta de baixo da cômoda de alcânfora cheia de xales brancos,
verdes, lilás. Estavam com naftalina, empilhados como em um armarinho; não tive
coragem de perguntar à Irene o que ela pensava fazer com eles. Não precisávamos
ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos e o dinheiro aumentava.
Mas só o tricô entretinha a Irene, que mostrava uma destreza maravilhosa e eu
passava as horas vendo as suas mãos como ouriços prateados, agulhas indo e
vindo e, no chão, uma ou duas cestinhas, nas quais se agitavam constantemente
os novelos. Era lindo de se ver.
Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, um salão com gobelinos, a biblioteca e
três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodriguez
Peña. Somente um corredor, com sua porta maciça de carvalho, isolava essa parte
da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e a sala de
estar central, com a qual se comunicavam os outros quartos e o corredor. Entrava-se
na casa por um saguão com azulejos de Maiorca e a porta-cancela dava para a
sala. De maneira que a gente entrava pelo saguão, abria a cancela e entrava na
sala; tinha as portas dos nossos quartos ao lado e, em frente, o corredor que
levava à parte mais afastada; avançando pelo corredor se chegava à porta de
carvalho e mais adiante começava o outro lado da casa, ou também se podia virar
à esquerda justo antes da porta e continuar por um corredor mais estreito que
levava à cozinha e ao banheiro. Quando a porta ficava aberta, percebia-se que a
casa era grande demais; caso contrário, a percepção seria a de um apartamento
como aqueles que são construídos agora, em que apenas dá para se mexer. Eu e a
Irene morávamos sempre nessa parte da casa, quase nunca íamos mais além da
porta de carvalho, só para fazer a limpeza, pois é incrível como ficam cheios
de pó os móveis da casa. Buenos Aires até pode ser uma cidade limpa, mas isso é
por causa dos habitantes, e não por outra coisa. Há poeira demais no ar e, mal
sopra uma brisa, é possível perceber o pó nos mármores das consoles e entre os
losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo com o espanador, o pó voa
e fica suspenso no ar por um momento e depois se deposita novamente nos móveis
e nos pianos.
Sempre me lembrarei com
muita clareza porque foi simples e sem circunstâncias inúteis. A Irene estava
tricotando no seu quarto, eram as oito da noite quando, de repente, tive a
ideia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até
ficar de frente à porta de carvalho que estava entreaberta e, ao virar para a
cozinha, ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som vinha
impreciso e surdo, como se fosse de uma cadeira caindo sobre o tapete ou um
abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo
depois, no fundo do corredor que vinha daqueles quartos até a porta. Eu me
atirei contra a parede antes que fosse tarde demais, e fechei a porta
rapidamente apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso
lado e passei o ferrolho para ter mais segurança.
Fui até a cozinha, esquentei
a chaleirinha e, quando voltei com a bandeja de chimarrão, falei para a Irene:
- Tive que fechar a porta
do corredor. Tomaram a parte dos fundos.
Ela deixou cair o tricô e
me olhou com seus graves olhos cansados.
- Tem certeza?
Assenti.
- Então - ela disse, pegando
as agulhas - vamos ter que viver deste lado.
Eu preparava o chimarrão
com muito cuidado, mas ela demorou um
tempo em retomar sua tarefa. Lembro-me que ela estava tricotando um colete
cinza para mim; eu gostava desse colete.
Os primeiros dias foram
penosos porque ambos tínhamos deixado na parte tomada muitas coisas queridas.
Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. A
Irene pensou em uma garrafa de Hesperidina[1]
de muitos anos. Frequentemente (mas isto só aconteceu nos primeiros dias)
fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.
- Não está aqui.
E era mais uma coisa de tudo o que tínhamos perdido do
outro lado da casa.
Mas também tivemos vantagens. A limpeza se simplificou
tanto que, embora levantássemos tardíssimo, às nove e meia, por exemplo, antes
mesmo das onze já estávamos de papo pro ar. A Irene se acostumou a ir comigo até
a cozinha e a me ajudar a preparar o almoço. Pensamos bem e decidimos o
seguinte: enquanto eu preparava o almoço, a Irene cozinhava pratos para serem
comidos frios de noite. Ficamos contentes porque sempre era incômodo ter que
abandonar os quartos ao entardecer e começar a cozinhar. Agora nos bastava com
a mesa no quarto da Irene e as travessas de frios.
A Irene estava contente porque tinha mais tempo para
tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não
afligir a minha irmã, passei a revisar a coleção de selos do papai, e isso me
serviu para matar o tempo. A gente se divertia muito, cada um com suas coisas,
quase sempre reunidos no quarto da Irene que era o mais confortável. Às vezes,
a Irene dizia:
- Olha só este ponto que inventei. Não parece o
desenho de um trevo?
Um tempo depois, era eu
que colocava diante dos seus olhos um quadradinho de papel para que visse o
mérito de algum carimbo de Eupen e Malmédy. Estávamos bem e, pouco a pouco,
começávamos a não pensar. É possível viver sem pensar.
(Quando a Irene sonhava
em voz alta, eu logo perdia o sono. Nunca me acostumei a essa voz de estátua ou
de papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. A Irene dizia que meus
sonhos consistiam em grandes solavancos que, às vezes, faziam o cobertor cair. Nossos
quartos tinham a sala de estar no meio, mas, à noite, ouvia-se qualquer coisa
na casa. Ouvíamos a nossa respiração, nossa tosse, pressentíamos o gesto que
leva ao botão do abajur, as mútuas e frequentes insônias.
Fora isso, a casa estava
em silêncio. Durante o dia, eram os barulhos domésticos, o roçar metálico das
agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. Acho que
já disse que a porta de carvalho era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam
colados à parte tomada, falávamos em voz mais alta ou a Irene cantava canções
de ninar. Em uma cozinha, há barulhos demais de louça e de vidros para que
outros sons a invadam. Muito poucas vezes permitíamos o silêncio nesse lugar,
mas quando voltávamos aos quartos e à sala de estar, então a casa ficava
silenciosa e à meia luz, e até pisávamos o chão suavemente para não nos incomodarmos.
Eu acho que era por isso que, de noite, quando a Irene começava a sonhar em voz
alta, eu logo perdia o sono.)
É quase repetir a mesma
coisa salvo as consequências. De noite, sinto sede e, antes de nos deitarmos, disse
à Irene que ia até a cozinha para pegar um copo d’água. Da porta do quarto (ela
estava fazendo tricô), ouvi um barulho na cozinha; talvez na cozinha ou talvez
no banheiro porque a curva do corredor abafava o som. Minha maneira brusca de
me deter chamou a atenção da Irene, e ela se aproximou de mim sem dizer uma
palavra. Ficamos escutando os barulhos, percebendo claramente que eram deste
lado da porta de carvalho, na cozinha e no banheiro, ou até mesmo no corredor,
onde começava a curva, quase ao nosso lado.
Nem sequer nos olhamos.
Apertei o braço da Irene e a fiz correr comigo até a porta-cancela, sem olharmos
para trás. Os barulhos se ouviam cada vez mais intensos, mas sempre surdos, nas
nossas costas. Fechei a porta-cancela de uma só vez e ficamos no saguão. Agora
não se ouvia nada.
- Tomaram esta parte da
casa, disse Irene. O tricô estava pendurado em suas mãos e os fios chegavam até
a porta-cancela e se perdiam debaixo dela. Quando viu que os novelos tinham
ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar pra ele.
- Você teve tempo de
trazer alguma coisa? - perguntei-lhe inutilmente.
- Não, nada.
Estávamos só com a roupa
do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos que estavam no armário do meu quarto.
Agora já era tarde.
Como eu ainda tinha meu
relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura
da Irene (acho que ela estava chorando) e assim saímos à rua. Antes de nos
afastarmos, tive pena, fechei bem a porta de entrada e joguei a chave no
bueiro. Não fosse algum pobre diabo ter a ideia de roubar a chave e se meter na
casa, nessa hora e com a casa tomada.
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