quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Carlos Drummond de Andrade (31/10/1902 - 17/08/1987)

Há 110 anos, em 31 de outubro de 1902, nasceu em Itabira (Minas Gerais) o poeta, contista e cronista Carlos Drummond de Andrade.
Ele herdou dos modernistas a liberdade linguística, o verso livre, o metro livre, as temáticas cotidianas, mas foi além.
"A obra de Drummond alcança — como Fernando Pessoa ou Jorge de Lima, Herberto Helder ou Murilo Mendes — um coeficiente de solidão, que o desprende do próprio solo da História, levando o leitor a uma atitude livre de referências, ou de marcas ideológicas, ou prospectivas", afirma Alfredo Bosi.



    No meio do caminho (publicado em 1928 na Revista Antropofagia)

    No meio do caminho tinha uma pedra
    tinha uma pedra no meio do caminho
    tinha uma pedra
    no meio do caminho tinha uma pedra.

    Nunca me esquecerei desse acontecimento
    na vida de minhas retinas tão fatigadas.
    Nunca me esquecerei que no meio do caminho
    tinha uma pedra
    tinha uma pedra no meio do caminho
    no meio do caminho tinha uma pedra.




    Quadrilha (http://www.memoriaviva.com.br/audio/quadrilha.mp3)

    João amava Teresa que amava Raimundo
    que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
    que não amava ninguém.
    João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
    Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
    Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
    que não tinha entrado na história.



    José (http://www.memoriaviva.com.br/audio/jose.mp3)

    E agora, José?
    A festa acabou,
    a luz apagou,
    o povo sumiu,
    a noite esfriou,
    e agora, José?
    e agora, você?
    você que é sem nome,
    que zomba dos outros,
    você que faz versos,
    que ama, protesta?
    e agora, José?

    Está sem mulher,
    está sem discurso,
    está sem carinho,
    já não pode beber,
    já não pode fumar,
    cuspir já não pode,
    a noite esfriou,
    o dia não veio,
    o bonde não veio,
    o riso não veio,
    não veio a utopia
    e tudo acabou
    e tudo fugiu
    e tudo mofou,
    e agora, José?

    E agora, José?
    Sua doce palavra,
    seu instante de febre,
    sua gula e jejum,
    sua biblioteca,
    sua lavra de ouro,
    seu terno de vidro,
    sua incoerência,
    seu ódio – e agora?

    Com a chave na mão
    quer abrir a porta,
    não existe porta;
    quer morrer no mar,
    mas o mar secou;
    quer ir para Minas,
    Minas não há mais.
    José, e agora?

    Se você gritasse,
    se você gemesse,
    se você tocasse
    a valsa vienense,
    se você dormisse,
    se você cansasse,
    se você morresse...
    Mas você não morre,
    você é duro, José!

    Sozinho no escuro
    qual bicho-do-mato,
    sem teogonia,
    sem parede nua
    para se encostar,
    sem cavalo preto
    que fuja a galope,
    você marcha, José!
    José, para onde?




    Morte do leiteiro (http://www.memoriaviva.com.br/audio/leiteiro.mp3)

                        A Cyro Novaes

    Há pouco leite no país,
    é preciso entregá-lo cedo.
    Há muita sede no país,
    é preciso entregá-lo cedo.
    Há no país uma legenda,
    que ladrão se mata com tiro.
    Então o moço que é leiteiro
    de madrugada com sua lata
    sai correndo e distribuindo
    leite bom para gente ruim.
    Sua lata, suas garrafas
    e seus sapatos de borracha
    vão dizendo aos homens no sono
    que alguém acordou cedinho
    e veio do último subúrbio
    trazer o leite mais frio
    e mais alvo da melhor vaca
    para todos criarem força
    na luta brava da cidade.

    Na mão a garrafa branca
    não tem tempo de dizer
    as coisas que lhe atribuo
    nem o moço leiteiro ignaro,
    morados na Rua Namur,
    empregado no entreposto,
    com 21 anos de idade,
    sabe lá o que seja impulso
    de humana compreensão.
    E já que tem pressa, o corpo
    vai deixando à beira das casas
    uma apenas mercadoria.

    E como a porta dos fundos
    também escondesse gente
    que aspira ao pouco de leite
    disponível em nosso tempo,
    avancemos por esse beco,
    peguemos o corredor,
    depositemos o litro...
    Sem fazer barulho, é claro,
    que barulho nada resolve.

    Meu leiteiro tão sutil
    de passo maneiro e leve,
    antes desliza que marcha.
    É certo que algum rumor
    sempre se faz: passo errado,
    vaso de flor no caminho,
    cão latindo por princípio,
    ou um gato quizilento.
    E há sempre um senhor que acorda,
    resmunga e torna a dormir.

    Mas este acordou em pânico
    (ladrões infestam o bairro),
    não quis saber de mais nada.
    O revólver da gaveta
    saltou para sua mão.
    Ladrão? se pega com tiro.
    Os tiros na madrugada
    liquidaram meu leiteiro.
    Se era noivo, se era virgem,
    se era alegre, se era bom,
    não sei,
    é tarde para saber.

    Mas o homem perdeu o sono
    de todo, e foge pra rua.
    Meu Deus, matei um inocente.
    Bala que mata gatuno
    também serve pra furtar
    a vida de nosso irmão.
    Quem quiser que chame médico,
    polícia não bota a mão
    neste filho de meu pai.
    Está salva a propriedade.
    A noite geral prossegue,
    a manhã custa a chegar,
    mas o leiteiro
    estatelado, ao relento,
    perdeu a pressa que tinha.

    Da garrafa estilhaçada,
    no ladrilho já sereno
    escorre uma coisa espessa
    que é leite, sangue... não sei.
    Por entre objetos confusos,
    mal redimidos da noite,
    duas cores se procuram,
    suavemente se tocam,
    amorosamente se enlaçam,
    formando um terceiro tom
    a que chamamos aurora.


Nenhum comentário:

Postar um comentário